quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Espiritualidade de idolatria e submissão


Por Dora Incontri no Blog da ABPE

Não podemos nos omitir diante dessa grave denúncia e que vai alcançando em poucos dias, o número de dezenas, em relação ao renomado médium (que nunca foi espírita, mas isso tanto faz): João de Deus de Abadiânia. Nesses últimos meses, diversos líderes religiosos têm sido denunciados como assediadores, abusadores de mulheres e/ou crianças e adolescentes. 

Já escrevemos aqui um artigo a respeito, quando se falou do médium de Curitiba Maury Rodrigues da Cruz. Depois foram monges budistas, sobre os quais se pediu uma posição mais clara e enérgica do Dalai Lama; depois foi o Prem Baba e, claro, os padres católicos de sempre. 

O que todos esses abusadores denunciados têm em comum? Todos são homens. Todos aparentemente abusaram de pessoas que estavam em situação de fragilidade emocional (seja por uma questão de doença física, psíquica ou por idade ainda imatura). E todos gozam de uma suposta superioridade moral, diante da qual a comunidade se curva reverente. Uma autoridade inquestionável, porque envolta nas dimensões do sagrado! 

Então, vamos ao primeiro item… o machismo estrutural, enraizado em nossa cultura e em todas as culturas humanas, há milênios. Nesse mesmo instante em que estou escrevendo esse artigo, milhares de mulheres no mundo estão sendo assediadas, estupradas e mortas. Milhares de crianças estão perdendo precocemente sua infância, abusadas por pais, padrastos, tios, avôs, parentes ou estranhos. Isso acontece no contexto da família, das instituições, das religiões. 

Em toda parte, os abutres abusam, se insinuam e acham que isso é natural, é seu direito, é o que os torna “homens”. Então, em primeiro lugar precisamos mudar a educação das crianças, afastando a ideia e a projeção de que o homem (masculino) tem que ser aquele macho predatório, sem sensibilidade e, portanto, sem compaixão de ninguém. 

Esse é o estofo do abusador e do estuprador. Em segundo lugar, precisamos falar claramente às meninas e aos meninos também: falar sobre os abusos, sobre os cuidados que devem ter consigo, com os alertas que devem estar sempre presentes, já que estão mergulhados num mundo de homens violentos. 

O desafio é falar e conscientizar, sem que percam a capacidade de confiar no amor e no ser humano, principalmente no ser humano masculino. Falar de maneira delicada para compreenderem que são donos dos próprios corpos. Entretanto a fala só fará sentido se desde pequenas as crianças sejam tratadas com afeto e respeito, com cuidado e atenção. 

Elas saberão se proteger na medida em que forem protegidas. Lembro-me da minha bisavó italiana, nascida no século XIX, que não cheguei a conhecer, mas cuja cultura de cuidado e atenção chegou até mim, através de minha avó e de minha mãe: essas mulheres estavam sempre de olho, não deixavam fechar as portas, não descuidavam de prestar atenção…não sei que experiências essa minha bisavó teve, para ser precavida e sempre atenta desse jeito. Mas com mães assim por perto, abusos não ocorrem. 

Em terceiro lugar – e esse é o tema mais importante aqui: precisamos finalmente tratar a espiritualidade de forma desierarquizada. Nem mestres, nem gurus, nem médiuns veneráveis, nem sacerdotes inatingíveis. Humanos somos todos. 

A espiritualidade deve ser horizontal, no campo da fraternidade. Verticalidade só com Deus, o supremo. Mas Deus está dentro de nós, de todos nós. Então chega de querer procurar salvadores, curadores, mestres, a quem nos entregamos cegamente. 

Qualquer tipo de relação religiosa ou espiritual que leve à submissão, à idolatria, à anulação da própria criticidade e razão, à humilhação, deve ser posta imediatamente sob suspeita. Mestres verdadeiros não querem submissão, nem obediência do outro. 

Querem servir, acolher, discretamente; ensinam sem espalhafato, através do exemplo e de conselhos que servem para todos. Jesus não aceitou o título de bom, Gandhi tinha horror quando o chamavam de Mahatma. Não aceitava devoção e submissão de ninguém. 

A espiritualidade verdadeira e saudável promove o ser humano ao melhor de si. Empodera-o para superar seus problemas, para desenvolver suas capacidades. Não aprisiona a um guru que o pode explorar financeiramente, psiquicamente e… sexualmente. O abusador, o falso profeta seduz com elogios (você é especial!), oferece milagres, ameaça, submete. 

Então, como tanta gente cai numa cilada dessas, quando é tão óbvio o engodo? Nunca tinha ido ver João de Deus, mas nada me caía bem: as pessoas (sobretudo mulheres) ajoelhadas diante dele, ele sentado numa espécie de trono, acima do povo, os retratos dele próprio na parede… quando um suposto líder espiritual não se envergonha de receber devoção e homenagens indébitas, já de imediato pode-se desconfiar dele. 

Além disso, o comércio em torno das atividades dele (a Veja publicou em 2013 um artigo alertando sobre os seus milhões), já o colocam de imediato sob a suspeita de charlatanismo. Considero que o mais problemático são os espíritas não terem suficiente avaliação crítica para não perceberem de antemão o clima de exploração das massas. Embora ele nunca tenha se declarado espírita e ter práticas diferentes das propostas pelo espiritismo, conheço muitos espíritas que lá foram! E gostaram. 

Quem estuda Kardec deveria saber que a mediunidade deve ser algo desprendido, discreto e jamais espetacular e que os médiuns são seres falíveis como qualquer um e não devem ser endeusados. Trabalhei durante mais de 20 anos num trabalho mediúnico de cura, com uma médium já falecida, minha querida amiga D. Addy Piedade, no Centro Espírita Pedro e Anita em São Paulo. Eu ficava na sustentação com outras pessoas. 

Foram dos momentos mais elevados espiritualmente que tive em minha vida. No entanto, ela fazia um trabalho anônimo, para pouca gente, devagar e sempre, sem nenhuma ostentação e sempre demonstrando carinho, respeito e acolhimento para as pessoas que vinham buscá-la. E vi muitas curas acontecerem, até com pessoas da minha família. 

A mediunidade deve ser, assim, distribuída democraticamente entre muita gente, que trabalha em pequenos círculos familiares e em centros discretos. A mediunidade espetáculo, onde multidões vão buscar cura, cartas, oráculos, dá sempre nisso. Nenhum médium tem essa potência de curar a todos, de atender com veracidade a todos. Se tivesse, seria um Jesus e mesmo Jesus não curava todo mundo e nem se punha como fonte distribuidora de milagres. Dizia: “vai, tua fé te salvou!” Essa é a verdadeira cura, aquela que nos remete ao nosso próprio poder e não aquela que manipula nosso desejo de salvação fácil. 

Cresçamos e deixemos de ser crianças espirituais, sempre pedintes de consolo, cura, cartas. Formemos muitos médiuns, trabalhemos em círculos pequenos e igualitários. Façamos uma espiritualidade de comunhão e escuta mútua e não de idolatria e submissão! E uma espiritualidade com muitas mulheres! Finalmente, quero deixar a minha solidariedade à inúmeras vítimas, incluindo a filha dele, que conta sua vida de extrema violência e nossa indignação em relação a esses homens, que como se já não bastasse o machismo nosso de cada dia, ainda fazem do campo da fé, um campo de violência sexual. 

Quero deixar registrado aqui também meu apoio à Sabrina Campos Bittencourt que, tendo sofrido ela mesma violência sexual de religiosos, está nesse ativismo necessário e urgente de denunciar e ajudar as mulheres a contarem suas dores. Coragem admirável de todas elas, porque é através da fala destemida e franca, que havemos de curar essas chagas da humanidade.