quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

ENTREVISTA - José Pacheco, a Escola da Ponte e o Espiritismo


Do Jornal CRÍTICA ESPÍRITA/Nov. 2018
Clique AQUI para ler o jornal completo e a entrevista na íntegra

Reproduzimos a seguir trechos da entrevista exclusiva que os responsáveis pelo jornal Crítica Espírita conseguiram com o Professor José Pacheco, educador português, idealizador e fundador da Escola da Ponte, em Portugal. "Autor da coluna Entretanto, da Revista Educação (Ed. Segmento), José Pacheco conversou conosco sobre educação e espiritismo. Que sua obra e visão possa inspirar os educadores em geral, e os espíritas em particular, pois, se há uma bandeira sob a qual estes deve se reunir e lutar, essa bandeira é a da educação pública, de qualidade e emancipadora"

Crítica Espírita- Professor, diante de sua extensa produção acadêmica, poderia resumir quais são as suas ideias essenciais sobre a educação?
José Pacheco- Há mais de cem anos, Almada Negreiros escreveu: Quando eu nasci, todos os tratados que visavam salvar o mundo, já estavam escritos. Só faltava salvar o mundo. As minhas ideias sobre educação não são minhas, são as de muitos educadores que, desde há muito tempo, anunciaram a possibilidade de uma nova educação. São ideias na prática, práxis. Sempre trabalhei no chão da escola, onde foram introduzidas diferentes correntes pedagógicas. Hoje, após passar pelo ideário subjacente ao paradigma instrucionista e ao paradigma da aprendizagem, tenho como referência o que poderemos chamar paradigma da comunicação. Aprendemos uns com os outros mediados pelo mundo...

CE- Como surgiu-lhe a inspiração de tocar um projeto de educação que resultaria na Escola da Ponte?
José Pacheco- Na Escola da Ponte, a decisão de mudar foi de origem ética. Encontrei jovens analfabetos, que tinham sido ensinados do modo que eu antes ensinava. Se eu continuasse a trabalhar do modo como, até então, havia trabalhado, aqueles jovens continuariam sem saber ler. Tomei consciência de que, dando aula, eu não conseguiria ensiná-los. Na época, nem da existência de um Piaget tínhamos conhecimento. Agimos por intuição pedagógica, movidos pelo amor que tínhamos (como qualquer professor tem) pelos alunos.

Escola da Ponte - Portugal
CE- Para quem está acostumado com a educação tradicional, pode parecer utópica uma educação sem turmas, sem provas, sem reprovações e focada na autonomia do aluno. Diante disso, pode explicar como funciona a Escola da Ponte?
José Pacheco - Na Ponte de há mais de quarenta anos, as salas de aula foram substituídas por espaços de “área aberta”. Depois, deram lugar a aprendizagens em múltiplos espaços sociais (edifício da escola incluído...), num anúncio da possibilidade de conceber novas construções sociais de aprendizagem. No edifício da escola, nas praças, nas empresas, nas igrejas, nas bibliotecas públicas, e centros culturais, passamos a contemplar um novo modo de desenvolvimento curricular, duas vias complementares de um mesmo projeto: um currículo subjetivo, nem projeto de vida pessoal, a partir de talentos cedo revelados; um currículo de comunidade, baseado em necessidades, desejos da sociedade do entorno. São muitos e diversos os caminhos de mudança, sendo urgente que os educadores compreendam o que significa o termo “currículo”. Que, por exemplo, os professores não percam tempo a tentar ensinar fora de tempo o que é um “dígrafo”, ou expressões como “sujeito nulo subentendido”, o que são “plantas epífitas”, ou em que consiste um “ato ilocutório diretivo”? Quando fui aluno de escola “tradicional”, gastei um tempo precioso a decorar os afluentes da margem esquerda de rios e de outras lengalengas que, agora, me ocupam a memória de longo prazo. Não me fizeram mais sábio, nem mais feliz. É preciso experimentar um novo modo de organização, em equipes de pessoas autônomas e responsáveis, todas cuidando de si mesmas e de todo o resto, numa escola realmente “pública”. Não negando o potencial da razão e da reflexão, juntar-lhe as emoções, os sentimentos, as intuições e as experiências de vida. E uma escuta que, para além do seu significado metodológico, terá de ser humanamente significativa e de assentar numa deontologia de troca “ganha-ganha”. Que se perceba que toda a prática tem teoria subjacente, que não há prática sem teoria. E que a fundamentação teórica do ato de educar seja multirreferencial, em práxis coerentes com necessidades educativas locais, escapando a modas e fundamentalismos pedagógicos. Que a aprendizagem não está centrada no professor, nem no aluno, mas na relação. E que da qualidade da relação depende uma boa qualidade educacional. As escolas poderão desenvolver um currículo mais adequado às novas competências e exigências do século XXI. A velha escola há de parir uma nova educação. Mas as dores do parto serão intensas, enquanto as “naturalizações”, as “certezas”, as crenças ministeriais, a tecnocracia e a burocracia continuarem a prevalecer em domínios onde deveria prevalecer a pedagogia. Quando modificamos o modo, asseguramos a todos o direito de ser sábio e feliz.

CE- Quais as diferenças que o senhor poderia pontuar entre a educação em Portugal e no Brasil? E o que o Brasil precisa para ter uma educação pública de qualidade? 
José Pacheco- Portugal e Brasil parecem estar irmanados numa deriva educacional sem fim à vista, num tempo que, no futuro, deverá ser conhecido como a proto-história da escola, um tempo em que a educação não prosperou nos bastidores de uma administração educacional burocratizada. As mudanças deverão partir, simultaneamente, das escolas e do poder público. E são precisos muitos anos, para que se consolidem. As mudanças carecem de continuidade e de avaliação. Nos últimos anos, apesar da profusão de tentativas de reforma, programas, projetos, congressos, cursos e afins, não se logrou melhorar a qualidade da educação. Mas o Brasil tem tudo aquilo que precisa. E esse desiderato será alcançado quando as escolas deixarem de estar cativas de um modelo educacional obsoleto e de uma gestão burocratizada, na qual os critérios de natureza administrativa se sobrepõem a critérios de natureza pedagógica.

CE- Numa certa exposição, o senhor comentou que uma das maiores experiências pedagógicas do mundo foi feita por Eurípedes Barsanulfo, em Sacramento. O que ele fez de especial? 
José Pacheco- Alcunharam de elitista o seu labor pedagógico, só porque recorria a métodos dinâmicos de aprendizagem. Os seus alunos praticavam observação e pesquisa na cidade e na natureza. Eurípedes aboliu castigos e exames, num relacionamento baseado no diálogo, ao contrário dos moldes pedagógicos vigentes na época. Acreditava que escola poderia ser agente transformador da sociedade. E nos depoimentos dos seus alunos, apercebemo-nos de que transformou a escola, a partir de um novo conceito de criança e de aprendizagem, da modificação do papel do professor, da reconfiguração dos tempos e espaços pedagógicos, da reorganização escolar, da reelaboração cultural, que antecedeu em mais de cem anos a elaboração do conceito de comunidade de aprendizagem. Mobilizava a comunidade, para que ajudasse as famílias das crianças mais carentes a ir à escola. Havia muitas crianças negras matriculadas e vários professores negros compunham o quadro de professores da sua escola, num tempo em que os discursos racistas, com influências eugenistas, eram comuns e os negros eram marginalizados. No seu colégio, os alunos praticavam Astronomia, o estudo da (e na) Natureza, em aulas-passeios, muito antes de Freinet. Escreveu o seu aluno Germano: conversávamos, estudávamos bons livros e admirávamos a natureza, admirávamos o voo dos insetos, o cantar dos pássaros e de preferência de um sabiá de laranjeira, que vinha pousar nos galhos baixos das árvores e encher o ar com sua melodia, esse era o predileto do professor. Os dias de apresentações de teatro eram dias de festa. Os alunos confeccionavam belos cenários e toda a comunidade participava: Eurípedes incentivava a participação dos alunos em ações sociais e os jovens aprendiam a moral na prática comunitária, aprendiam a pensar e a questionar, como nos diz a Corina: Eurípedes não queria alunos que obedecessem cegamente, mas que aprendessem a criticar, a questionar e a pensar. Substituiu o ensino verbalista pela arte de observar e apreender o mundo.

CE- Allan Kardec era pedagogo e professor, e sempre enfatizou o caráter educador e moralizante do espiritismo. O que o senhor pode dizer sobre essa relação entre educação e espiritismo?
José Pacheco- Apenas que essa é uma das razões porque ajudei espíritas a compor as bases da “pedagogia espírita”. Nela, o “educare” se concretiza. Os talentos são “extraídos”, o ser divino se manifesta...

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Espiritualidade de idolatria e submissão


Por Dora Incontri no Blog da ABPE

Não podemos nos omitir diante dessa grave denúncia e que vai alcançando em poucos dias, o número de dezenas, em relação ao renomado médium (que nunca foi espírita, mas isso tanto faz): João de Deus de Abadiânia. Nesses últimos meses, diversos líderes religiosos têm sido denunciados como assediadores, abusadores de mulheres e/ou crianças e adolescentes. 

Já escrevemos aqui um artigo a respeito, quando se falou do médium de Curitiba Maury Rodrigues da Cruz. Depois foram monges budistas, sobre os quais se pediu uma posição mais clara e enérgica do Dalai Lama; depois foi o Prem Baba e, claro, os padres católicos de sempre. 

O que todos esses abusadores denunciados têm em comum? Todos são homens. Todos aparentemente abusaram de pessoas que estavam em situação de fragilidade emocional (seja por uma questão de doença física, psíquica ou por idade ainda imatura). E todos gozam de uma suposta superioridade moral, diante da qual a comunidade se curva reverente. Uma autoridade inquestionável, porque envolta nas dimensões do sagrado! 

Então, vamos ao primeiro item… o machismo estrutural, enraizado em nossa cultura e em todas as culturas humanas, há milênios. Nesse mesmo instante em que estou escrevendo esse artigo, milhares de mulheres no mundo estão sendo assediadas, estupradas e mortas. Milhares de crianças estão perdendo precocemente sua infância, abusadas por pais, padrastos, tios, avôs, parentes ou estranhos. Isso acontece no contexto da família, das instituições, das religiões. 

Em toda parte, os abutres abusam, se insinuam e acham que isso é natural, é seu direito, é o que os torna “homens”. Então, em primeiro lugar precisamos mudar a educação das crianças, afastando a ideia e a projeção de que o homem (masculino) tem que ser aquele macho predatório, sem sensibilidade e, portanto, sem compaixão de ninguém. 

Esse é o estofo do abusador e do estuprador. Em segundo lugar, precisamos falar claramente às meninas e aos meninos também: falar sobre os abusos, sobre os cuidados que devem ter consigo, com os alertas que devem estar sempre presentes, já que estão mergulhados num mundo de homens violentos. 

O desafio é falar e conscientizar, sem que percam a capacidade de confiar no amor e no ser humano, principalmente no ser humano masculino. Falar de maneira delicada para compreenderem que são donos dos próprios corpos. Entretanto a fala só fará sentido se desde pequenas as crianças sejam tratadas com afeto e respeito, com cuidado e atenção. 

Elas saberão se proteger na medida em que forem protegidas. Lembro-me da minha bisavó italiana, nascida no século XIX, que não cheguei a conhecer, mas cuja cultura de cuidado e atenção chegou até mim, através de minha avó e de minha mãe: essas mulheres estavam sempre de olho, não deixavam fechar as portas, não descuidavam de prestar atenção…não sei que experiências essa minha bisavó teve, para ser precavida e sempre atenta desse jeito. Mas com mães assim por perto, abusos não ocorrem. 

Em terceiro lugar – e esse é o tema mais importante aqui: precisamos finalmente tratar a espiritualidade de forma desierarquizada. Nem mestres, nem gurus, nem médiuns veneráveis, nem sacerdotes inatingíveis. Humanos somos todos. 

A espiritualidade deve ser horizontal, no campo da fraternidade. Verticalidade só com Deus, o supremo. Mas Deus está dentro de nós, de todos nós. Então chega de querer procurar salvadores, curadores, mestres, a quem nos entregamos cegamente. 

Qualquer tipo de relação religiosa ou espiritual que leve à submissão, à idolatria, à anulação da própria criticidade e razão, à humilhação, deve ser posta imediatamente sob suspeita. Mestres verdadeiros não querem submissão, nem obediência do outro. 

Querem servir, acolher, discretamente; ensinam sem espalhafato, através do exemplo e de conselhos que servem para todos. Jesus não aceitou o título de bom, Gandhi tinha horror quando o chamavam de Mahatma. Não aceitava devoção e submissão de ninguém. 

A espiritualidade verdadeira e saudável promove o ser humano ao melhor de si. Empodera-o para superar seus problemas, para desenvolver suas capacidades. Não aprisiona a um guru que o pode explorar financeiramente, psiquicamente e… sexualmente. O abusador, o falso profeta seduz com elogios (você é especial!), oferece milagres, ameaça, submete. 

Então, como tanta gente cai numa cilada dessas, quando é tão óbvio o engodo? Nunca tinha ido ver João de Deus, mas nada me caía bem: as pessoas (sobretudo mulheres) ajoelhadas diante dele, ele sentado numa espécie de trono, acima do povo, os retratos dele próprio na parede… quando um suposto líder espiritual não se envergonha de receber devoção e homenagens indébitas, já de imediato pode-se desconfiar dele. 

Além disso, o comércio em torno das atividades dele (a Veja publicou em 2013 um artigo alertando sobre os seus milhões), já o colocam de imediato sob a suspeita de charlatanismo. Considero que o mais problemático são os espíritas não terem suficiente avaliação crítica para não perceberem de antemão o clima de exploração das massas. Embora ele nunca tenha se declarado espírita e ter práticas diferentes das propostas pelo espiritismo, conheço muitos espíritas que lá foram! E gostaram. 

Quem estuda Kardec deveria saber que a mediunidade deve ser algo desprendido, discreto e jamais espetacular e que os médiuns são seres falíveis como qualquer um e não devem ser endeusados. Trabalhei durante mais de 20 anos num trabalho mediúnico de cura, com uma médium já falecida, minha querida amiga D. Addy Piedade, no Centro Espírita Pedro e Anita em São Paulo. Eu ficava na sustentação com outras pessoas. 

Foram dos momentos mais elevados espiritualmente que tive em minha vida. No entanto, ela fazia um trabalho anônimo, para pouca gente, devagar e sempre, sem nenhuma ostentação e sempre demonstrando carinho, respeito e acolhimento para as pessoas que vinham buscá-la. E vi muitas curas acontecerem, até com pessoas da minha família. 

A mediunidade deve ser, assim, distribuída democraticamente entre muita gente, que trabalha em pequenos círculos familiares e em centros discretos. A mediunidade espetáculo, onde multidões vão buscar cura, cartas, oráculos, dá sempre nisso. Nenhum médium tem essa potência de curar a todos, de atender com veracidade a todos. Se tivesse, seria um Jesus e mesmo Jesus não curava todo mundo e nem se punha como fonte distribuidora de milagres. Dizia: “vai, tua fé te salvou!” Essa é a verdadeira cura, aquela que nos remete ao nosso próprio poder e não aquela que manipula nosso desejo de salvação fácil. 

Cresçamos e deixemos de ser crianças espirituais, sempre pedintes de consolo, cura, cartas. Formemos muitos médiuns, trabalhemos em círculos pequenos e igualitários. Façamos uma espiritualidade de comunhão e escuta mútua e não de idolatria e submissão! E uma espiritualidade com muitas mulheres! Finalmente, quero deixar a minha solidariedade à inúmeras vítimas, incluindo a filha dele, que conta sua vida de extrema violência e nossa indignação em relação a esses homens, que como se já não bastasse o machismo nosso de cada dia, ainda fazem do campo da fé, um campo de violência sexual. 

Quero deixar registrado aqui também meu apoio à Sabrina Campos Bittencourt que, tendo sofrido ela mesma violência sexual de religiosos, está nesse ativismo necessário e urgente de denunciar e ajudar as mulheres a contarem suas dores. Coragem admirável de todas elas, porque é através da fala destemida e franca, que havemos de curar essas chagas da humanidade.