Do Jornal CRÍTICA ESPÍRITA/Nov. 2018
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Reproduzimos a seguir trechos da entrevista exclusiva que os responsáveis pelo jornal Crítica Espírita conseguiram com o Professor José Pacheco, educador português, idealizador e fundador da Escola da Ponte, em Portugal. "Autor da coluna Entretanto, da Revista Educação (Ed. Segmento), José Pacheco conversou conosco sobre educação e espiritismo. Que sua obra e visão possa inspirar os educadores em geral, e os espíritas em particular, pois, se há uma bandeira sob a qual estes deve se reunir e lutar, essa bandeira é a da educação pública, de qualidade e emancipadora"
Crítica Espírita- Professor, diante de sua extensa produção acadêmica, poderia resumir quais são as suas ideias essenciais sobre a educação?
José Pacheco- Há mais de cem anos, Almada Negreiros escreveu: Quando eu nasci, todos os tratados que visavam salvar o mundo, já estavam escritos. Só faltava salvar o mundo. As minhas ideias sobre educação não são minhas, são as de muitos educadores que, desde há muito tempo, anunciaram a possibilidade de uma nova educação. São ideias na prática, práxis. Sempre trabalhei no chão da escola, onde foram introduzidas diferentes correntes pedagógicas. Hoje, após passar pelo ideário subjacente ao paradigma instrucionista e ao paradigma da aprendizagem, tenho como referência o que poderemos chamar paradigma da comunicação. Aprendemos uns com os outros mediados pelo mundo...
CE- Como surgiu-lhe a inspiração de tocar um projeto de educação que resultaria na Escola da Ponte?
José Pacheco- Na Escola da Ponte, a decisão de mudar foi de origem ética. Encontrei jovens analfabetos, que tinham sido ensinados do modo que eu antes ensinava. Se eu continuasse a trabalhar do modo como, até então, havia trabalhado, aqueles jovens continuariam sem saber ler. Tomei consciência de que, dando aula, eu não conseguiria ensiná-los. Na época, nem da existência de um Piaget tínhamos conhecimento. Agimos por intuição pedagógica, movidos pelo amor que tínhamos (como qualquer professor tem) pelos alunos.
CE- Para quem está acostumado com a educação tradicional, pode parecer utópica uma educação sem turmas, sem provas, sem reprovações e focada na autonomia do aluno. Diante disso, pode explicar como funciona a Escola da Ponte?
José Pacheco - Na Ponte de há mais de quarenta anos, as salas de aula foram substituídas por espaços de “área aberta”. Depois, deram lugar a aprendizagens em múltiplos espaços sociais (edifício da escola incluído...), num anúncio da possibilidade de conceber novas construções sociais de aprendizagem. No edifício da escola, nas praças, nas empresas, nas igrejas, nas bibliotecas públicas, e centros culturais, passamos a contemplar um novo modo de desenvolvimento curricular, duas vias complementares de um mesmo projeto: um currículo subjetivo, nem projeto de vida pessoal, a partir de talentos cedo revelados; um currículo de comunidade, baseado em necessidades, desejos da sociedade do entorno. São muitos e diversos os caminhos de mudança, sendo urgente que os educadores compreendam o que significa o termo “currículo”. Que, por exemplo, os professores não percam tempo a tentar ensinar fora de tempo o que é um “dígrafo”, ou expressões como “sujeito nulo subentendido”, o que são “plantas epífitas”, ou em que consiste um “ato ilocutório diretivo”? Quando fui aluno de escola “tradicional”, gastei um tempo precioso a decorar os afluentes da margem esquerda de rios e de outras lengalengas que, agora, me ocupam a memória de longo prazo. Não me fizeram mais sábio, nem mais feliz. É preciso experimentar um novo modo de organização, em equipes de pessoas autônomas e responsáveis, todas cuidando de si mesmas e de todo o resto, numa escola realmente “pública”. Não negando o potencial da razão e da reflexão, juntar-lhe as emoções, os sentimentos, as intuições e as experiências de vida. E uma escuta que, para além do seu significado metodológico, terá de ser humanamente significativa e de assentar numa deontologia de troca “ganha-ganha”. Que se perceba que toda a prática tem teoria subjacente, que não há prática sem teoria. E que a fundamentação teórica do ato de educar seja multirreferencial, em práxis coerentes com necessidades educativas locais, escapando a modas e fundamentalismos pedagógicos. Que a aprendizagem não está centrada no professor, nem no aluno, mas na relação. E que da qualidade da relação depende uma boa qualidade educacional. As escolas poderão desenvolver um currículo mais adequado às novas competências e exigências do século XXI. A velha escola há de parir uma nova educação. Mas as dores do parto serão intensas, enquanto as “naturalizações”, as “certezas”, as crenças ministeriais, a tecnocracia e a burocracia continuarem a prevalecer em domínios onde deveria prevalecer a pedagogia. Quando modificamos o modo, asseguramos a todos o direito de ser sábio e feliz.
CE- Quais as diferenças que o senhor poderia pontuar entre a educação em Portugal e no Brasil? E o que o Brasil precisa para ter uma educação pública de qualidade?
José Pacheco- Portugal e Brasil parecem estar irmanados numa deriva educacional sem fim à vista, num tempo que, no futuro, deverá ser conhecido como a proto-história da escola, um tempo em que a educação não prosperou nos bastidores de uma administração educacional burocratizada. As mudanças deverão partir, simultaneamente, das escolas e do poder público. E são precisos muitos anos, para que se consolidem. As mudanças carecem de continuidade e de avaliação. Nos últimos anos, apesar da profusão de tentativas de reforma, programas, projetos, congressos, cursos e afins, não se logrou melhorar a qualidade da educação. Mas o Brasil tem tudo aquilo que precisa. E esse desiderato será alcançado quando as escolas deixarem de estar cativas de um modelo educacional obsoleto e de uma gestão burocratizada, na qual os critérios de natureza administrativa se sobrepõem a critérios de natureza pedagógica.
CE- Numa certa exposição, o senhor comentou que uma das maiores experiências pedagógicas do mundo foi feita por Eurípedes Barsanulfo, em Sacramento. O que ele fez de especial?
José Pacheco- Alcunharam de elitista o seu labor pedagógico, só porque recorria a métodos dinâmicos de aprendizagem. Os seus alunos praticavam observação e pesquisa na cidade e na natureza. Eurípedes aboliu castigos e exames, num relacionamento baseado no diálogo, ao contrário dos moldes pedagógicos vigentes na época. Acreditava que escola poderia ser agente transformador da sociedade. E nos depoimentos dos seus alunos, apercebemo-nos de que transformou a escola, a partir de um novo conceito de criança e de aprendizagem, da modificação do papel do professor, da reconfiguração dos tempos e espaços pedagógicos, da reorganização escolar, da reelaboração cultural, que antecedeu em mais de cem anos a elaboração do conceito de comunidade de aprendizagem. Mobilizava a comunidade, para que ajudasse as famílias das crianças mais carentes a ir à escola. Havia muitas crianças negras matriculadas e vários professores negros compunham o quadro de professores da sua escola, num tempo em que os discursos racistas, com influências eugenistas, eram comuns e os negros eram marginalizados. No seu colégio, os alunos praticavam Astronomia, o estudo da (e na) Natureza, em aulas-passeios, muito antes de Freinet. Escreveu o seu aluno Germano: conversávamos, estudávamos bons livros e admirávamos a natureza, admirávamos o voo dos insetos, o cantar dos pássaros e de preferência de um sabiá de laranjeira, que vinha pousar nos galhos baixos das árvores e encher o ar com sua melodia, esse era o predileto do professor. Os dias de apresentações de teatro eram dias de festa. Os alunos confeccionavam belos cenários e toda a comunidade participava: Eurípedes incentivava a participação dos alunos em ações sociais e os jovens aprendiam a moral na prática comunitária, aprendiam a pensar e a questionar, como nos diz a Corina: Eurípedes não queria alunos que obedecessem cegamente, mas que aprendessem a criticar, a questionar e a pensar. Substituiu o ensino verbalista pela arte de observar e apreender o mundo.
CE- Allan Kardec era pedagogo e professor, e sempre enfatizou o caráter educador e moralizante do espiritismo. O que o senhor pode dizer sobre essa relação entre educação e espiritismo?
José Pacheco- Apenas que essa é uma das razões porque ajudei espíritas a compor as bases da “pedagogia espírita”. Nela, o “educare” se concretiza. Os talentos são “extraídos”, o ser divino se manifesta...
Crítica Espírita- Professor, diante de sua extensa produção acadêmica, poderia resumir quais são as suas ideias essenciais sobre a educação?
José Pacheco- Há mais de cem anos, Almada Negreiros escreveu: Quando eu nasci, todos os tratados que visavam salvar o mundo, já estavam escritos. Só faltava salvar o mundo. As minhas ideias sobre educação não são minhas, são as de muitos educadores que, desde há muito tempo, anunciaram a possibilidade de uma nova educação. São ideias na prática, práxis. Sempre trabalhei no chão da escola, onde foram introduzidas diferentes correntes pedagógicas. Hoje, após passar pelo ideário subjacente ao paradigma instrucionista e ao paradigma da aprendizagem, tenho como referência o que poderemos chamar paradigma da comunicação. Aprendemos uns com os outros mediados pelo mundo...
CE- Como surgiu-lhe a inspiração de tocar um projeto de educação que resultaria na Escola da Ponte?
José Pacheco- Na Escola da Ponte, a decisão de mudar foi de origem ética. Encontrei jovens analfabetos, que tinham sido ensinados do modo que eu antes ensinava. Se eu continuasse a trabalhar do modo como, até então, havia trabalhado, aqueles jovens continuariam sem saber ler. Tomei consciência de que, dando aula, eu não conseguiria ensiná-los. Na época, nem da existência de um Piaget tínhamos conhecimento. Agimos por intuição pedagógica, movidos pelo amor que tínhamos (como qualquer professor tem) pelos alunos.
Escola da Ponte - Portugal |
José Pacheco - Na Ponte de há mais de quarenta anos, as salas de aula foram substituídas por espaços de “área aberta”. Depois, deram lugar a aprendizagens em múltiplos espaços sociais (edifício da escola incluído...), num anúncio da possibilidade de conceber novas construções sociais de aprendizagem. No edifício da escola, nas praças, nas empresas, nas igrejas, nas bibliotecas públicas, e centros culturais, passamos a contemplar um novo modo de desenvolvimento curricular, duas vias complementares de um mesmo projeto: um currículo subjetivo, nem projeto de vida pessoal, a partir de talentos cedo revelados; um currículo de comunidade, baseado em necessidades, desejos da sociedade do entorno. São muitos e diversos os caminhos de mudança, sendo urgente que os educadores compreendam o que significa o termo “currículo”. Que, por exemplo, os professores não percam tempo a tentar ensinar fora de tempo o que é um “dígrafo”, ou expressões como “sujeito nulo subentendido”, o que são “plantas epífitas”, ou em que consiste um “ato ilocutório diretivo”? Quando fui aluno de escola “tradicional”, gastei um tempo precioso a decorar os afluentes da margem esquerda de rios e de outras lengalengas que, agora, me ocupam a memória de longo prazo. Não me fizeram mais sábio, nem mais feliz. É preciso experimentar um novo modo de organização, em equipes de pessoas autônomas e responsáveis, todas cuidando de si mesmas e de todo o resto, numa escola realmente “pública”. Não negando o potencial da razão e da reflexão, juntar-lhe as emoções, os sentimentos, as intuições e as experiências de vida. E uma escuta que, para além do seu significado metodológico, terá de ser humanamente significativa e de assentar numa deontologia de troca “ganha-ganha”. Que se perceba que toda a prática tem teoria subjacente, que não há prática sem teoria. E que a fundamentação teórica do ato de educar seja multirreferencial, em práxis coerentes com necessidades educativas locais, escapando a modas e fundamentalismos pedagógicos. Que a aprendizagem não está centrada no professor, nem no aluno, mas na relação. E que da qualidade da relação depende uma boa qualidade educacional. As escolas poderão desenvolver um currículo mais adequado às novas competências e exigências do século XXI. A velha escola há de parir uma nova educação. Mas as dores do parto serão intensas, enquanto as “naturalizações”, as “certezas”, as crenças ministeriais, a tecnocracia e a burocracia continuarem a prevalecer em domínios onde deveria prevalecer a pedagogia. Quando modificamos o modo, asseguramos a todos o direito de ser sábio e feliz.
CE- Quais as diferenças que o senhor poderia pontuar entre a educação em Portugal e no Brasil? E o que o Brasil precisa para ter uma educação pública de qualidade?
José Pacheco- Portugal e Brasil parecem estar irmanados numa deriva educacional sem fim à vista, num tempo que, no futuro, deverá ser conhecido como a proto-história da escola, um tempo em que a educação não prosperou nos bastidores de uma administração educacional burocratizada. As mudanças deverão partir, simultaneamente, das escolas e do poder público. E são precisos muitos anos, para que se consolidem. As mudanças carecem de continuidade e de avaliação. Nos últimos anos, apesar da profusão de tentativas de reforma, programas, projetos, congressos, cursos e afins, não se logrou melhorar a qualidade da educação. Mas o Brasil tem tudo aquilo que precisa. E esse desiderato será alcançado quando as escolas deixarem de estar cativas de um modelo educacional obsoleto e de uma gestão burocratizada, na qual os critérios de natureza administrativa se sobrepõem a critérios de natureza pedagógica.
CE- Numa certa exposição, o senhor comentou que uma das maiores experiências pedagógicas do mundo foi feita por Eurípedes Barsanulfo, em Sacramento. O que ele fez de especial?
José Pacheco- Alcunharam de elitista o seu labor pedagógico, só porque recorria a métodos dinâmicos de aprendizagem. Os seus alunos praticavam observação e pesquisa na cidade e na natureza. Eurípedes aboliu castigos e exames, num relacionamento baseado no diálogo, ao contrário dos moldes pedagógicos vigentes na época. Acreditava que escola poderia ser agente transformador da sociedade. E nos depoimentos dos seus alunos, apercebemo-nos de que transformou a escola, a partir de um novo conceito de criança e de aprendizagem, da modificação do papel do professor, da reconfiguração dos tempos e espaços pedagógicos, da reorganização escolar, da reelaboração cultural, que antecedeu em mais de cem anos a elaboração do conceito de comunidade de aprendizagem. Mobilizava a comunidade, para que ajudasse as famílias das crianças mais carentes a ir à escola. Havia muitas crianças negras matriculadas e vários professores negros compunham o quadro de professores da sua escola, num tempo em que os discursos racistas, com influências eugenistas, eram comuns e os negros eram marginalizados. No seu colégio, os alunos praticavam Astronomia, o estudo da (e na) Natureza, em aulas-passeios, muito antes de Freinet. Escreveu o seu aluno Germano: conversávamos, estudávamos bons livros e admirávamos a natureza, admirávamos o voo dos insetos, o cantar dos pássaros e de preferência de um sabiá de laranjeira, que vinha pousar nos galhos baixos das árvores e encher o ar com sua melodia, esse era o predileto do professor. Os dias de apresentações de teatro eram dias de festa. Os alunos confeccionavam belos cenários e toda a comunidade participava: Eurípedes incentivava a participação dos alunos em ações sociais e os jovens aprendiam a moral na prática comunitária, aprendiam a pensar e a questionar, como nos diz a Corina: Eurípedes não queria alunos que obedecessem cegamente, mas que aprendessem a criticar, a questionar e a pensar. Substituiu o ensino verbalista pela arte de observar e apreender o mundo.
CE- Allan Kardec era pedagogo e professor, e sempre enfatizou o caráter educador e moralizante do espiritismo. O que o senhor pode dizer sobre essa relação entre educação e espiritismo?
José Pacheco- Apenas que essa é uma das razões porque ajudei espíritas a compor as bases da “pedagogia espírita”. Nela, o “educare” se concretiza. Os talentos são “extraídos”, o ser divino se manifesta...